Um mar alienígena, composto por uma mistura viscosa de metano e etano líquidos, além de outros hidrocarbonetos, a uma temperatura de 180 graus abaixo de zero. Mas ainda assim, indiscutivelmente, um mar. A reflexão da tênue luz solar sobre a superfície líquida, recém-capturada de forma espetacular pela sonda Cassini, da Nasa, não deixa dúvidas.
Composição da imagens da sonda Cassini revela reflexo do Sol nos mares de Titã.
Bem-vindo a Titã, a maior e mais impressionante das luas de Saturno, recoberta por uma atmosfera que só permite a observação da superfície em infravermelho, e ainda assim apenas em “janelas” de frequências muito estreitas.
Quando as sondas Voyagers passaram por lá, no início da década de 1980, esperava-se que elas fossem revelar a natureza desse mundo tão curioso. Contudo, a névoa densa que recobre toda a superfície impediu qualquer observação detalhada. O que, por si só, já é uma estranheza. Como Titã conseguiu manter uma atmosfera mais densa que a nossa, mesmo tendo menos da metade do diâmetro da Terra?
Ninguém sabe a resposta certa, mas uma das possibilidades é de que Saturno, dez vezes mais distante do Sol que a Terra, tenha tão pouca energia solar disponível que o frio ajude a conservar o ar. Quanto menos energia, menos agitação das partículas. Menos agitadas, elas atingem com menos frequência a velocidade de escape. Ficam, portanto, presas à lua, mesmo que a gravidade não seja lá grande coisa – bem menos intensa que a de Marte, por exemplo, que tem uma atmosfera, mas muito menos densa que a de Titã.
Outra coisa que chama atenção na lua saturnina é a composição atmosférica. Na porção mais próxima da superfície, ela tem 95% de nitrogênio e 5% de metano. Nitrogênio é também o gás predominante no ar terrestre (aqui corresponde a 80% do total). Já metano é um composto orgânico, muitas vezes associado à vida, que não sobrevive na atmosfera a não ser que seja reposto de forma contínua.
Essa composição faz de Titã um alvo preferencial dos cientistas para o estudo de química prebiótica, ou seja, capaz de dar origem à vida. Análises feitas pelas Voyagers e pela Cassini mostram que há grandes quantidades de moléculas orgânicas mais complexas na atmosfera.
As nuvens de Titã não entregam nada; veja Saturno ao fundo. A lua cinzenta menor é Dione.
TERRA CONGELADA
Ao menos nesse sentido, Titã poderia ser imaginado como uma versão da Terra primitiva que acabou “congelada” no tempo, diante do frio que faz nas profundezas do Sistema Solar. Poderia evoluir lá a série de reações químicas que culminam com a vida, tal qual a conhecemos?
Muito provavelmente, não. A temperatura da superfície de Titã é de 179 graus negativos, medida pela sonda europeia Huygens, que pousou lá em 2005, depois de uma viagem de sete anos acoplada à americana Cassini. Estamos falando de um frio tão intenso a ponto de água existir apenas como rocha sólida. O cenário em torno da Huygens mostrou diversas pedras arredondadas e brancas – gelo de água, tão duro quanto granito na Terra.
Não escapou aos cientistas o fato de as rochas serem arredondadas, como pedras de rios. E aí entra outro aspecto tão interessante quanto estranho de Titã: ele é o único corpo do Sistema Solar, além da Terra, a ter um ciclo hidrológico. A temperatura é tal que metano, em vez de água, pode estar ora em estado líquido, ora em estado gasoso. Ou seja, metano evapora e chove, e Titã tem vários lagos e pequenos mares dessa substância em sua superfície. Tão familiar e tão bizarro, tudo ao mesmo tempo.
Especula-se que, sob a atmosfera e a superfície congelada, Titã possa, a exemplo de outros mundos do Sistema Solar exterior, ter um oceano de água líquida, talvez misturado a amônia (que reduziria a temperatura de congelamento), mantido aquecido pelo efeito de maré. Não está descartada a presença de criovulcanismo – vulcões que expelem lava de água de vez em quando na superfície.
Será que, num passado remoto, esse oceano pode ter estado diretamente exposto à atmosfera, em forma líquida? Estudos feitos por Brett Bladman, da Universidade da Columbia Britânica, em 2006, mostram que pedras ejetadas da Terra por impactos de asteroides poderiam chegar a Titã.
“Micróbios da Terra podem ter sido levados à superfície de Titã”, afirma Ralph Lorenz, cientista britânico que participa da missão da Cassini, complementando que a chance de isso ter acontecido é baixíssima. “Se [os micróbios] calharam de pousar durante os primórdios de Titã, quando o oceano de água e amônia estava exposto à atmosfera, talvez possam ter florescido. Você nunca pode dizer nunca.”
VIDA COMO NÃO A CONHECEMOS
Uma ideia que talvez seja ainda mais intrigante é imaginar vida diferente da terrestre habitando Titã. Será que uma química completamente diferente não poderia usar metano como solvente, em vez de água? Há quem especule que formas de vida baseadas em silício – elemento químico similar ao carbono, mas bem menos versátil para formar moléculas – encontrariam um ambiente propício em mundos gelados. É uma proposta que há muito tempo circula na ficção científica e que pode fazer sentido em um ambiente tão alienígena quanto Titã.
Afinal, em meio àquele frio, a energia disponível para reações químicas é menor, e talvez as ligações feitas por carbono sejam fortes demais para ser quebradas à vontade. As de silício, menos poderosas, mas com características similares, talvez sejam melhores para construir a base de moléculas úteis para a vida.
Embora alguns astrobiólogos, como Dirk Schulze-Makuch e David Grinspoon, ousem imaginar possíveis metabolismos adequados a seres vivos em Titã, por ora tudo não passa de especulação. Parte-se da premissa de que a vida é um processo químico que pode se originar e se configurar de muitas maneiras diferentes. Não sabemos se esse realmente é o caso.
Mensageiro Sideral-UOL